Introdução

Bem-vindos ao meu diário de viagem! Eu me chamo Maurício, e estudo no Instituto de Biociências, na Universidade de São Paulo, com um foco especial nos departamentos de Ecologia e Botânica. Esse ano, eu recebi uma subvenção para começar a minha tese. Dado o meu interesse na sustentabilidade e nas múltiplas formas em que o Estado brasileiro tem ignorado a sua importância, eu decidi usar esse dinheiro para estudar a forma com que outras comunidades enfrentam o desafio da conservação. A primeira dessas comunidades será um grupo de nativos Guajajara, situado em Cana-Brava, uma aldeia pequena no estado do Maranhão, e que fica há apenas 15 quilômetros da costa norte do Brasil.[1] Eu ouvi dizer que este povo tem uma relação bastante única com o meio-ambiente, então, concluí que eles seriam um ponto de começo ótimo! Graças ao meu amigo que tem família nessa área, o cacique já aprovou a visita e está preparando a aldeia para a minha chegada nesta terça-feira. Essa viagem não será fácil (quarenta horas de carro não é brincadeira), mas eu estou otimista com respeito à minha pesquisa.[2] Eu só espero que eles tenham a mesma atitude a respeito da minha presença na sua comunidade.

29 de novembro de 2017 – Povoado Cana-Brava, Município de Maranhão

Bom dia, pessoal! Eu estou escrevendo esta entrada no começo do meu segundo dia entre os Guajajara. Infelizmente, o meu horário de ontem esteve tão cheio que não houve oportunidade de documentar as minhas primeiras experiências em Cana-Brava; espero que a minha memória não falhe agora!

Eu terminei o último segmento da minha viagem anteontem por volta de onze da noite. Quando cheguei no povoado, o cacique já estava à minha espera. Este líder, um homem alto e bastante moreno que se chama Ze’e[3], recebeu-me com muito prazer e levou-me para a sua casa, onde tinha preparado um quarto para mim. Naquele momento, eu estava tão cansado que teria dormido na rua se fosse a minha única opção! Felizmente, não foi preciso fazer isso, e assim terminou a minha primeira noite em Cana-Brava.

O dia seguinte começou cedo, logo ao nascer do sol; depois de um pequeno-almoço composto de arroz e abobrinha, dois produtos cultivados pela própria comunidade, o Ze’e insistiu em levar-me num tour guiado pela aldeia e os seus arredores[4]. Sendo o único líder deste povo, o Ze’e normalmente está muito ocupado com a supervisão dos seus membros e da logística cotidiana. Porém, como é raro eles terem visitas interessadas nas facetas agrícolas e sustentáveis de sua cultura, ele decidiu tirar um dia de folga para mim.

Nós passamos a primeira metade deste dia caminhando de casa em casa, falando com os membros da comunidade. Tradicionalmente, explicou-me o Ze’e, os povos Guajajara estão divididos em famílias nucleares, cada uma delas ocupando uma residência na aldeia.[5] Eu apreciei muito esta oportunidade para conhecer as pessoas que compõem este povo; como eu nasci e passei os primeiros vinte e dois anos da minha vida na cidade de São Paulo, nunca tinha conhecido um membro ativo de uma comunidade indígena, muito menos famílias inteiras. Um aspecto destas reuniões que me surpreendeu foi o tratamento holisticamente amável que eu vivenciei. Sendo uma pessoa branca, sem conexão com o mundo indígena, eu pensava que esta gente ia ficar desconfiada de mim; afinal de contas, eu não pertencia ao seu mundo, e o povo Guajajara carrega na memória uma história trágica devido a pessoas parecidas comigo. Mas, graças ao meu interesse no meio ambiente, ou talvez à convicção do cacique, eles receberam-me de braços abertos, uma experiência inesperada.

Depois desta série de reuniões, tive a oportunidade de começar a minha pesquisa com a ajuda de alguns agricultores indígenas. Segundo a tradição dos Guajajara, a maior parte da agricultura realiza-se em casa; normalmente, cada família possui um terreno entre 1 hectare e 4 hectares, no qual podem cultivar o que quiserem.[6] Mas, como Cana-Brava é maior que a aldeia Guajajara típica, também dedicaram uma porção do seu território a uma roça comunal. Foi essa terra, e o edifício utilizado para o depósito das colheitas, que Ze’e me mostrou.

Como ainda nem terminou o mês de novembro, falta muito tempo para a maior parte das safras crescerem; fazendeiros normalmente esperam até esta etapa para plantarem a soja e o milho, e os Guajajara devem fazer o mesmo com a mandioca, o amendoim, o arroz, a abóbora, e as outras comidas das quais eles se sustentam.[7] Além disso, o Ze’e também me mostrou uma planta que eu nunca tinha visto (uma ocasião especial, considerando a minha especialização!). Esta espécie, chamada de canapu pelos Guajajara, é um arbusto com frutas amarelas, medindo uns 50 ou 60 centímetros de altura. Na verdade, eu já tinha visto esta planta durante o nosso passeio; a aldeia está cheia delas! Aparentemente, os Guajajara não comem o canapu porque, segundo a sua religião, os seus antepassados comeram da sua fruta antes de que Maíra, o seu criador, lhes conferisse conhecimento sobre a agricultura.[8] Não pensava que ia aprender tanto sobre os mitos deste povo (e logo no primeiro dia também!), mas foi uma experiência bastante interessante com certeza.

Durante algum tempo, então, ficamos no terreno, falando sobre tudo e mais alguma coisa: a relação entre os Guajajara e o meio-ambiente, o seu papel como cacique na promoção de uma mentalidade ecológica, e a lista continua! Assim foram as horas passando, eu aprendendo não só sobre a botânica do Estado de Maranhão, mas também desta comunidade simultaneamente enorme e tão tragicamente invisível. É claro que eles estão cá; são o maior grupo indígenano Brasil, e têm uma presença especialmente marcada no nordeste do país.[9] Mas, apesar disso tudo, eu não sabia nada sobre os meus vizinhos indígenas antes deste primeiro dia, e suspeito que a mesma ignorância (intencional ou não) caracteriza a muitos outros membros da população brasileira.

Assim, o meu primeiro dia em Cana-Brava deixou-me com um objetivo duplo para o resto do meu tempo aqui. Por um lado, obviamente, continuarei a minha pesquisa. Eu vou ter que escrever uma tese em algum momento, então é melhor eu preparar-me agora! Por outro lado, entretanto, eu também quero aprender mais sobre estas pessoas que me receberam, que trataram a um desconhecido como se fosse da família. Eu espero que este segundo dia traga até mais oportunidades para alcançar esse objetivo; de qualquer forma, vocês serão os primeiros a saber! O Ze’e deve estar à minha espera para tomar o café da manhã, então vou concluir esta primeira entrada aqui. Até já!

 

 

Nota: Eu fiz o possível para só utilizar informação (geográfica e biográfica em relação aos Guajajara) que fosse correta e corrente. Eu tive alguma dificuldade em encontrar certas peças de informação, e acabei por usar a minha imaginação nestes casos. Os casos são os seguintes:

  • Eu não encontrei uma aldeia especificamente Guajajara, então escolhi a povoada Cana-Brava, que está situada numa região com muitos destes indígenas
  • Eu presumi que existe nessa aldeia um cacique, e eu lhe dei um nome que achei apropriado
  • Eu não sei se existe uma terra cultivada central nessa aldeia, mas inclui-a por razões narrativas

 

Bibliografia:

  1. “Guajajara.” Povos Indígenas do Brasil. Accessed September 26, 2018. https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Guajajara.

Notas de rodapé:

[1] Eu encontrei esta aldeia usando a aplicação de Google Maps.

[2] Eu também usei o Google Maps para fazer esta calculação.

[3] Baseei o seu nome na palavra Guajajara ze’egete, o nome que eles deram à sua língua e que significa “fala boa.” Achei apto para esta personagem, como ele é uma espécie de guia para o Maurício, transmitindo informação como um idioma. (bom!)

[4] “Guajajara,” Povos Indígenas do Brasil, accessed September 26, 2018, https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Guajajara.

[5] Ibid.

[6] Ibid.

[7] Ibid.

[8] Ibid.

[9] Ibid.