(Anti-)Heróis: O Legado Complexo dos Irmãos Villas Boas

Por Bruno Fernandes

23 Setembro 2018

Na memória coletiva brasileira, os irmãos Orlando, Leonardo, e Cláudio Villas Boas, que foram nomeados duas vezes para o prémio Nobel da Paz em 1971 e 1975, são relembrados como santos modernos. Sem seus esforços pacíficos e persistentes, o Parque Indígena do Xingu (PIX) não existiria, e as 16 etnias que agora habitam a reserva estariam em risco de extinção sob a ameaça da expansão branca. No seu filme Xingu (2011), Cao Hamburger retrata os irmãos Villas Boas como heróis complexos com boas intenções, mas fundamentalmente imperfeitos. Hamburger não enfoca apenas o contato pacífico com os grupos desconhecidos do Alto Xingu, que contrasta bastante com os métodos exterminadores dos sertanistas do século XIX,  mas também mostra, de forma reduzida, os modos como os irmãos imitam os colonizadores brancos.

No início do filme, conhecemos Orlando, Cláudio, e Leonardo: três paulistanos educados, que tentam escapar suas realidades burguesas em busca de aventura. Quando os irmãos mentem sobre sua formação, inscrevem-se como peões analfabetos, e fazem o primeiro contato pacífico que termina num intercâmbio de bens entre os brancos e os indígenas, entendemos que os irmãos vêm com a intenção de corrigir a violência exercida pelos bandeirantes precedentes. Esta imagem pura dos irmãos persiste durante as negociações com o Estado de Mato Grosso e o Governo Federal. Os Villas Boas simplesmente querem assegurar o direitos originário sobre as terras nativas e garantir a autonomia dos indígenas no Xingu. [ Eu diria que a ênfase posta sobre os irmãos, prejudica o retrato dos líderes indígenas que não são apresentados como agentes influentes nestas conversas. ]

No 67˚ minuto do filme, Cláudio ganha a aprovação do ministro e começa o trabalho de criar fronteiras para o parque do Xingu. Se este ato termina com o estabelecimento do maior parque indígena do mundo com cerca de 3 milhões de hectares, a criação de fronteiras arbitrárias por um branco, embora tenha sida informada por chefes índios, é um gesto essencialmente colonizador e imperialista. Mesmo que o parque  tenha se tornado um refúgio indígena com acesso limitado aos brancos, as áreas foram rapidamente distribuídas para mineiradores e madeireiros e desmatadas para projetos do Governo Federal como a Rodovia Transamazônica. A violência implicada pelo estabelecimento de fronteiras é resumida na “Operação Caiabi”, na qual Cláudio e seus parceiros vão para a fronteira para resgatar cerca de 500 Caiabi, que estão no trajeto da recém-concebida auto-estrada. Apesar das táticas ameaçadoras de Cláudio, a população Caiabi é dizimada, e menos de 100 Caiabi conseguem fazer a viagem para dentro do parque.

Em resumo, as intenções dos Villas Boas podiam ser boas, mas a criação de uma área designada para os indígenas implica que o território fora do parque é do Governo brasileiro para ser distribuído a fazendeiros e para desenvolver projetos infraestruturais. Eu creio que estas consequências foram inevitáveis, mas estão essencialmente conectadas à criação do parque. O filme tenta  apresentar a complexidade dos irmãos Villas Boas, que aproveitam o máximo do seu poder reduzido para garantir o direito indígena sobre algum território, mas, ao mesmo tempo acabam por repetir os atos imperialistas que tentaram evitar. Mesmo assim, hoje, o candidato que lidera as sondagens presidenciais pretende revogar as proteções garantidas ao povo indígena pela constituição de 1988, e a política dos Villas Boas é necessária agora mais do que nunca.