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Paulo Frazão(Guajajara)

 

Paulo Frazão 

Bem-vindos ao nosso site sobre as nossas experiências com o “Brasil Indígena.” Eu me chamo Paulo, e sou um estudante de terceiro ano, no Departamento de Informática, na Universidade de Princeton. Eu decidi embarcar nessa viagem intelectual por várias razões. De um lado, eu sou filho de pais portugueses; por isso, tenho muito interesse na história portuguesa e nos efeitos, positivos e negativos, de suas ações. Ao mesmo tempo, no entanto, as populações indígenas são  tão frequentemente esquecidas, que eu achei essa aula uma oportunidade incrível para poder ouvir e entender a sua perspetiva. Espero que vocês desfrutem da minha pesquisa sobre os Guajajara e de meu Diário de Viagem : uma exploração narrativa!

Os Guajajara: Uma Introdução

Os Guajajara: Gênero e Sociedade

Os Guajajara: Cosmologia e Misticismo

Os Guajajara: Representação demográfica

Os Guajajara: Guardiões da Floresta

Os Guajajara: Assassinatos Indígenas e o Terror

Os Guajajara: [Diário de Viagem] Uma Exploração Narrativa, Parte 1

Os Guajajara: [Diário de Viagem] Uma Exploração Narrativa, Parte 2

Os Guajajara: [Diário de Viagem] Uma Exploração Narrativa, Pt. 3

Os Guajajara: Uma entrevista com Sônia Guajajara

Os Guajajara: Um canto indígena de um povo do Maranhão

Os Guajajara: Uma Introdução

 

Este semestre, eu tive o prazer de trabalhar com o povo Guajajara, uma comunidade indígena que mora principalmente no nordeste do Brazil. Este povo, com mais de 27.616 membros (segundo a um estudo feito em 2014), vive numa série de 11 Terras Indígenas no estado de Maranhão. Na realidade, a vasta maioria da sua população (~85%) vive em só três Terras: Araribóia, Bacurizinho e Cana-Brava.

Uma familia Guajajara na aldeia de Cana Brava

A palavra Guajajara, o nome da sua comunidade e da sua língua, tem uma origem antiga e desconhecida. Segundo a alguns expertos, ela significa “os donos do cocar.” O cocar é uma espécie de enfeite para a cabeça muito importante na sua cultura, um símbolo entre milhares da riqueza da sua tradição. Outra indicação desta profundez é a sua língua do mesmo nome; ela pertence à família Tupi-Guarani e é tão importante na sua cultura que os Guajajara a chamam de ze’egete, ou “fala boa.”

Um exemplo dum cocar tradicional

Apesar de todos estes elementos, entretanto, o aspecto desta comunidade mais interessante é a sua história, principalmente do seu contacto com os europeus. Depois dum encontro inicial em 1615, a comunidade começou a ser ameaçada por grupos de traficantes de escravos portugueses e missões que tinham a intenção de “branquear” o seu povo. Estas interações levaram à Revolta de 1901, uma série de batalhas entre os Guajajara e a população branca na qual morreram mais de 100 indígenas.

Cauiré Imana foi o cacique Guajajara durante a Revolta de 1901.

Referências para fotos:

  1. https://pib.socioambiental.org/en/Povo:Guajajara
  2. https://picsart.com/i/sticker-cocar-india-230420659046212
  3. https://www.estantevirtual.com.br/livros/olimpio-cruz/cauire-imana-o-cacique-rebelde/4270416790

Os Guajajara: Gênero e Sociedade

 

Essa semana, a conferência intitulada She Roars vem para Princeton. Durante três dias, mulheres de todo o país virão para a universidade para discutirem a condição do sexo feminino no mundo contemporâneo. Por isso, para continuar a discussão sobre esse tema, eu decidi pesquisar o papel do gênero na comunidade Guajajara, principalmente em um contexto sociopolítico.

Uma propaganda feita para o evento

Como a maior parte das outras tribos na região, os Guajajara sustentam uma divisão marcada entre homem e mulher no campo do trabalho. Embora existam algumas ambiguidades, certas atividades, como a caça e a preparação ritual, continuam reservadas aos homens, enquanto alguns papeis tipicamente considerado “femininos” são cumpridos pelas mulheres. Interessante, muitas responsabilidades agrícolas pertencem a esse segundo grupo; enquanto os rapazes caçam, as senhoras normalmente tratam do cultivo das colheitas, os dois gêneros trabalhando para a subsistência.

Um campo na Terra Indígena de Lagoa Comprida

Uma dinâmica de poder parecida existe no campo político também. Os homens e os meninos, regularmente, recebem mais educação, os mentores mais experientes, e a vasta maioria das oportunidades para participarem na supervisão e liderança de suas aldeias. Entretanto, esse caso, talvez previsível, tem levado algumas mulheres Guajajara a procurarem alguma agência fora de sua tribo, como  Sônia Guajajara. Sônia estudou em um colégio agrícola em Minas Gerais, e foi uma candidata`a vice-presidência do Brasil. Obviamente, nem todas as mulheres Guajajara podem seguir o mesmo caminho que a Sônia. Mas permanece um caso interessante porque mostra, de certa forma, o poder e a criatividade da mulher indígena ao enfrentar uma sociedade infelizmente patriarcal.

Sónia Guajajara, a mulher mencionada acima

Referências para fotos:

  1. https://is1-ssl.mzstatic.com/image/thumb/Music128/v4/ec/5c/5d/ec5c5d6f-e4aa-82be-b258-988fd255f1f6/source/600x600bb.jpg
  2. https://img.socioambiental.org/d/210570-1/guajajara_3.jpg
  3. https://pbs.twimg.com/media/DlJEI5cXcAAufrb.jpg

Os Guajajara: Cosmologia e Misticismo

 

Estas últimas duas semanas, eu foquei a minha pesquisa indígena em campos e dinâmicas bastante concretas; a maior parte da informação que tenho encontrado é histórica, detalhando elementos biográficos dos Guajajara, como a origem da tribo, as maneiras em que a cultura tem se transformado ao longo do tempo, e a relação entre homem e mulher na sua sociedade. Sendo assim, eu decidi abordar um tema um pouco mais abstrato neste post: o misticismo e a cosmologia.

Apesar de muitos Guajajara terem se convertido ao cristianismo, ao longo dos últimos quatro séculos, muitos ainda acreditam em um sistema espiritual compartilhado entre a maioria dos grupos Tupi-Guarani (uma demonstração dessas crenças está incluída acima, em um vídeo da tradicional Festa do Milho). A sua hierarquia cosmológica distingue  quatro tipos de entidades sobrenaturais. O primeiro grupo é composto dos criadores, aqueles seres que tiveram a responsabilidade de construir e cultivar o mundo. O membro dessa classe mais famoso é o Maíra, um herói cultural, que eu mencionei numa das minhas últimas entradas. O segundo grupo de seres espirituais são os “donos”; cada membro deste conjunto é um dono de algum aspecto da natureza, como as florestas (possuídas pelos Ka’a’zar) ou as árvores (dirigidas pelos Wira’zar). Essas entidades, como os azang, espíritos malignos, são muito receados entre os Guajajara. Em comparação, os piwara, outro grupo composto de espíritos animais, não metem tanto medo; eles geralmente são considerados fantasmas pacíficos, especialmente em comparação com os outros seres.

Uma mulher Guajajara participando num ritual tradicional

Além desse breve olhar sobre a espiritualidade Tupi-Guarani ter sido uma experiência fascinante, também achei interessante pensar sobre o efeito do desmatamento e de outras tragédias ambientais nesse sistema místico. Essa hierarquia atribui muito poder a seres fundamentalmente ligados a entidades naturais: árvores, rios, terra, e assim por diante. Mas, o que é que acontece quando as árvores caem, os rios são barrados, e a terra já não produz o que sempre produziu? Os efeitos psicológicos nos adeptos dessa religião devem ser graves, uma realidade que deve estar afetando esas comunidades hoje em dia.

Referências para fotos e vídeos:

  1. https://www.youtube.com/watch?v=nguhpLP5J64
  2. https://i.pinimg.com/originals/ab/9b/e7/ab9be73629db4632b54d7e9266cfeba3.jpg

Os Guajajara: Representação demográfica

 

Um tema que surgiu várias vezes nas nossas últimas discussões é o conceito de representação. Com todas as noticias recentes sobre as eleições no Brasil, e o fato da voz indígena estar basicamente ausente nesta discussão, eu comecei a pensar na importância de uma comunidade extensiva e unida na auto-representação de um povo. Por isso, eu decidi focar a minha pesquisa na demografia dos Guajajara, explorando elementos específicos de sua população.

Crianças numa escola na aldeia de Cana Brava

Segundo Mércio Gomes, um antropólogo brasileiro, havia mais ou menos 3.000 indígenas Guajajara, quando entraram em contato com os europeus pela primeira vez. Previsivelmente, essa invasão levou ao enfraquecimento da população; através de uma combinação de guerra e doença, a estimativa da quantidade de indígenas Guajajara baixou para 2.000, em 1942. Ao longo do tempo, entretanto, esse número começou a aumentar devido a uma diminuição do contato com os brancos ou ao desenvolvimento de uma relação mais amável entre eles, talvez; hoje em dia, vivem mais de 13.000 Guajajara nas suas Terras Indígenas, espalhados pelo estado do Maranhão.

Mércio Pereira Gomes, o antropólogo supracitado

Interessante, esses dados não incluem aqueles membros da comunidade que migraram para as cidades, procurando trabalho em resposta às invasões dos madeireiros e empresários brasileiros. Essa tendência tem contribuído com uma dinâmica social interessante: a maior parte dos casamentos interétnicos envolvendo os Guajajara não ocorre entre uma mulher indígena e um homem branco, mas entre rapazes indígenas e moças brancas. Muitos dos migrantes para as cidades são homens jovens, e alguns acabam por começar uma família nesse ambiente novo; de outro lado, as mulheres Guajajara representam uma espécie de comodidade para os seus parentes, um incentivo para os rapazes na comunidade  ajudarem a apoiarem a sua família.

De qualquer forma, seria interessante pensar na maneira em que esses detalhes demográficos afetam a representação dos Guajajara na esfera política, principalmente nesta época contenciosa.

 

Referências para fotos:

  1. https://img.socioambiental.org/d/210578-1/guajajara_6.jpg
  2. https://edwardluz.files.wordpress.com/2014/03/adcc6-mc3a9rcio.jpg?w=640

Os Guajajara: Guardiões da Floresta

 

Essa semana, eu queria enfocar-me não nos Guajajara em geral, mas em um indivíduo específico, que está trabalhando para asseverar a segurança do seu povo no futuro.

Claudio da Silva, o supracitado líder dos Guardiões da Floresta

Cláudio da Silva, um membro duma comunidade Guajajara situada no estado de Maranhão, é o líder de um grupo armado chamado os Guardiões da Floresta. Este grupo patrulha o território do seu povo todos os dias, procurando madeireiros, fazendeiros, e outros grupos que querem aproveitar de sua terra ilegalmente. No princípio, os Guardiões me fizeram lembrar do grupo que decidiu demarcar a sua terra no filme Amazónia Inc., dirigido por Estevão Ciavatta. Ao contrário desses outros indivíduos, entretanto, os métodos que da Silva emprega são um pouco mais diretos; alguns dos seus críticos até os chamariam de hostis. Em um artigo escrito por Sam Eaton, para The Week, da Silva  conta de uma excursão, na qual ele cortou uma máquina industrial aos pedaços usando uma motosserra, um aviso aos madeireiros ilegais para não voltarem ao seu território.

“Amazonia, Inc.” foi exibido em Princeton num evento patrocinado pelo Brazil LAB

De um lado, estes esforços, obviamente, têm sido bastante efetivos. Os Guajajara, e o resto da população indígena, vivem em  uma situação perigosíssima; muito dinheiro está em jogo para os seus invasores, assim, muitos não se importam de usar métodos inumanos para poderem cultivar em paz. A esse respeito,  talvez uma metodologia mais extrema seja útil; as ações de da Silva são hostis, mas o terror que ele quer manifestar deve ser um impedimento eficaz. Ao mesmo tempo, isso é uma aposta perigosa também. Se os madeireiros e fazendeiros não abandonarem a luta, da próxima vez voltarão com mais armas, mais guardas, e menos hesitação. Por isso, eu espero que este método não seja o único que o povo Guajajara empregue nos seus esforços, se não as consequências poderão ser trágicas.

Referências para fotos:

  1. https://images.theweek.com/sites/default/files/styles/large/public/d3-01-dasilva.jpg?itok=EWty7HYn
  2. https://spo.princeton.edu/events/brazil-lab-film-series-amazonia-inc-series-estevao-ciavatta

Os Guajajara: Assassinatos Indígenas e o Terror

 

A semana passada, eu escrevi sobre os Guardiões da Floresta, um grupo de indígenas Guajajara, que protege o seu território usando métodos relativamente agressivos, principalmente em comparação com outros grupos que tem essa mesma missão. Nessa altura, eu achei a sua estratégia promissora; no fim das contas, os madeireiros e outros invasores utilizaram métodos igualmente violentos, então, faz sentido eles tentarem ameaçá-los também.

Membros de outro grupo indígena empregando métodos similarmente agressivos na sua defesa do seu território

Hoje, entretanto, eu descobri que o meu medo de que estas estratégias levassem a mais conflito já tinha sido confirmado. No dia 16 de agosto, o corpo de Jorginho Guajajara, o cacique de uma comunidade no Maranhão, foi encontrado dentro de um rio, na cidade de Arame. Apesar de não pertencer a esse grupo mais “radical,” digamos, Jorginho acabou por ser uma vítima da violência, que pode ter resultado dos esforços dos Guardiões.

Um camião queimado pelos Guardiões durante uma patrulha

Segundo a um artigo que discute a sua morte, Jorginho é só um de quase 80 Guajajaras, que foram assassinados dessa forma, e nesta região desde o ano 2000; este rio em particular tem sido uma área popular para os inimigos dos indígenas largarem os cadáveres. Essa informação foi um choque para mim. Nas nossas discussões, temos falado muito sobre os desequilíbrios de poder que existem nesta luta; obviamente, os madeireiros e outros invasores têm dinheiro e, portanto, a força que esse dinheiro provê. Mas esses homicídios são uma indicação de uma realidade até mais grave, uma realidade na qual as empresas têm controle não só do território, mas da vida humana também. Apesar dos esforços de indivíduos como  Sônia Guajajara, que trabalham para exigir uma reação do governo, esses povos continuam presos em metodologias e estratégias que servem para justificar a violência fatal que as empresas utilizam para controlá-los.

Referências para fotos:

  1. https://ogimg.infoglobo.com.br/in/13836354-395-ae0/GEOMIDIA/375/2014-748539280-20140904091302635rts.jpg_20140904.jpg
  2. https://assets.survivalinternational.org/pictures/13115/whatsapp-image-2018-05-13-at-00-33-34-1_article_column.jpeg

Os Guajajara: [Diário de Viagem] Uma Exploração Narrativa, Parte 1

Introdução

Bem-vindos ao meu diário de viagem! Eu me chamo Maurício, e estudo no Instituto de Biociências, na Universidade de São Paulo, com um foco especial nos departamentos de Ecologia e Botânica. Esse ano, eu recebi uma subvenção para começar a minha tese. Dado o meu interesse na sustentabilidade e nas múltiplas formas em que o Estado brasileiro tem ignorado a sua importância, eu decidi usar esse dinheiro para estudar a forma com que outras comunidades enfrentam o desafio da conservação. A primeira dessas comunidades será um grupo de nativos Guajajara, situado em Cana-Brava, uma aldeia pequena no estado do Maranhão, e que fica há apenas 15 quilômetros da costa norte do Brasil.[1] Eu ouvi dizer que este povo tem uma relação bastante única com o meio-ambiente, então, concluí que eles seriam um ponto de começo ótimo! Graças ao meu amigo que tem família nessa área, o cacique já aprovou a visita e está preparando a aldeia para a minha chegada nesta terça-feira. Essa viagem não será fácil (quarenta horas de carro não é brincadeira), mas eu estou otimista com respeito à minha pesquisa.[2] Eu só espero que eles tenham a mesma atitude a respeito da minha presença na sua comunidade.

29 de novembro de 2017 – Povoado Cana-Brava, Município de Maranhão

Bom dia, pessoal! Eu estou escrevendo esta entrada no começo do meu segundo dia entre os Guajajara. Infelizmente, o meu horário de ontem esteve tão cheio que não houve oportunidade de documentar as minhas primeiras experiências em Cana-Brava; espero que a minha memória não falhe agora!

Eu terminei o último segmento da minha viagem anteontem por volta de onze da noite. Quando cheguei no povoado, o cacique já estava à minha espera. Este líder, um homem alto e bastante moreno que se chama Ze’e[3], recebeu-me com muito prazer e levou-me para a sua casa, onde tinha preparado um quarto para mim. Naquele momento, eu estava tão cansado que teria dormido na rua se fosse a minha única opção! Felizmente, não foi preciso fazer isso, e assim terminou a minha primeira noite em Cana-Brava.

O dia seguinte começou cedo, logo ao nascer do sol; depois de um pequeno-almoço composto de arroz e abobrinha, dois produtos cultivados pela própria comunidade, o Ze’e insistiu em levar-me num tour guiado pela aldeia e os seus arredores[4]. Sendo o único líder deste povo, o Ze’e normalmente está muito ocupado com a supervisão dos seus membros e da logística cotidiana. Porém, como é raro eles terem visitas interessadas nas facetas agrícolas e sustentáveis de sua cultura, ele decidiu tirar um dia de folga para mim.

Nós passamos a primeira metade deste dia caminhando de casa em casa, falando com os membros da comunidade. Tradicionalmente, explicou-me o Ze’e, os povos Guajajara estão divididos em famílias nucleares, cada uma delas ocupando uma residência na aldeia.[5] Eu apreciei muito esta oportunidade para conhecer as pessoas que compõem este povo; como eu nasci e passei os primeiros vinte e dois anos da minha vida na cidade de São Paulo, nunca tinha conhecido um membro ativo de uma comunidade indígena, muito menos famílias inteiras. Um aspecto destas reuniões que me surpreendeu foi o tratamento holisticamente amável que eu vivenciei. Sendo uma pessoa branca, sem conexão com o mundo indígena, eu pensava que esta gente ia ficar desconfiada de mim; afinal de contas, eu não pertencia ao seu mundo, e o povo Guajajara carrega na memória uma história trágica devido a pessoas parecidas comigo. Mas, graças ao meu interesse no meio ambiente, ou talvez à convicção do cacique, eles receberam-me de braços abertos, uma experiência inesperada.

Depois desta série de reuniões, tive a oportunidade de começar a minha pesquisa com a ajuda de alguns agricultores indígenas. Segundo a tradição dos Guajajara, a maior parte da agricultura realiza-se em casa; normalmente, cada família possui um terreno entre 1 hectare e 4 hectares, no qual podem cultivar o que quiserem.[6] Mas, como Cana-Brava é maior que a aldeia Guajajara típica, também dedicaram uma porção do seu território a uma roça comunal. Foi essa terra, e o edifício utilizado para o depósito das colheitas, que Ze’e me mostrou.

Como ainda nem terminou o mês de novembro, falta muito tempo para a maior parte das safras crescerem; fazendeiros normalmente esperam até esta etapa para plantarem a soja e o milho, e os Guajajara devem fazer o mesmo com a mandioca, o amendoim, o arroz, a abóbora, e as outras comidas das quais eles se sustentam.[7] Além disso, o Ze’e também me mostrou uma planta que eu nunca tinha visto (uma ocasião especial, considerando a minha especialização!). Esta espécie, chamada de canapu pelos Guajajara, é um arbusto com frutas amarelas, medindo uns 50 ou 60 centímetros de altura. Na verdade, eu já tinha visto esta planta durante o nosso passeio; a aldeia está cheia delas! Aparentemente, os Guajajara não comem o canapu porque, segundo a sua religião, os seus antepassados comeram da sua fruta antes de que Maíra, o seu criador, lhes conferisse conhecimento sobre a agricultura.[8] Não pensava que ia aprender tanto sobre os mitos deste povo (e logo no primeiro dia também!), mas foi uma experiência bastante interessante com certeza.

Durante algum tempo, então, ficamos no terreno, falando sobre tudo e mais alguma coisa: a relação entre os Guajajara e o meio-ambiente, o seu papel como cacique na promoção de uma mentalidade ecológica, e a lista continua! Assim foram as horas passando, eu aprendendo não só sobre a botânica do Estado de Maranhão, mas também desta comunidade simultaneamente enorme e tão tragicamente invisível. É claro que eles estão cá; são o maior grupo indígenano Brasil, e têm uma presença especialmente marcada no nordeste do país.[9] Mas, apesar disso tudo, eu não sabia nada sobre os meus vizinhos indígenas antes deste primeiro dia, e suspeito que a mesma ignorância (intencional ou não) caracteriza a muitos outros membros da população brasileira.

Assim, o meu primeiro dia em Cana-Brava deixou-me com um objetivo duplo para o resto do meu tempo aqui. Por um lado, obviamente, continuarei a minha pesquisa. Eu vou ter que escrever uma tese em algum momento, então é melhor eu preparar-me agora! Por outro lado, entretanto, eu também quero aprender mais sobre estas pessoas que me receberam, que trataram a um desconhecido como se fosse da família. Eu espero que este segundo dia traga até mais oportunidades para alcançar esse objetivo; de qualquer forma, vocês serão os primeiros a saber! O Ze’e deve estar à minha espera para tomar o café da manhã, então vou concluir esta primeira entrada aqui. Até já!

 

 

Nota: Eu fiz o possível para só utilizar informação (geográfica e biográfica em relação aos Guajajara) que fosse correta e corrente. Eu tive alguma dificuldade em encontrar certas peças de informação, e acabei por usar a minha imaginação nestes casos. Os casos são os seguintes:

  • Eu não encontrei uma aldeia especificamente Guajajara, então escolhi a povoada Cana-Brava, que está situada numa região com muitos destes indígenas
  • Eu presumi que existe nessa aldeia um cacique, e eu lhe dei um nome que achei apropriado
  • Eu não sei se existe uma terra cultivada central nessa aldeia, mas inclui-a por razões narrativas

 

Bibliografia:

  1. “Guajajara.” Povos Indígenas do Brasil. Accessed September 26, 2018. https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Guajajara.

Notas de rodapé:

[1] Eu encontrei esta aldeia usando a aplicação de Google Maps.

[2] Eu também usei o Google Maps para fazer esta calculação.

[3] Baseei o seu nome na palavra Guajajara ze’egete, o nome que eles deram à sua língua e que significa “fala boa.” Achei apto para esta personagem, como ele é uma espécie de guia para o Maurício, transmitindo informação como um idioma. (bom!)

[4] “Guajajara,” Povos Indígenas do Brasil, accessed September 26, 2018, https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Guajajara.

[5] Ibid.

[6] Ibid.

[7] Ibid.

[8] Ibid.

[9] Ibid.

Os Guajajara: [Diário de Viagem] Uma Exploração Narrativa, Parte 2

5 de dezembro de 2017 – Povoado Cana-Brava, Município de Maranhão

Bom dia, pessoal! Desculpem a falta de entradas durante estes últimos dias; eu tenho estado muito mais ocupado do que antes imaginava, graças ao Ze’e e ao resto da comunidade. Tem sido uma semana bastante instrutiva, tanto para a minha pesquisa como para o meu objetivo de conhecer melhor este povo, e estou empolgado para compartilhar as minhas histórias com vocês!

Eu passei os primeiros dias da semana aprendendo mais sobre o sistema agrícola do qual estes fazendeiros participam. Infelizmente, como expliquei na minha última entrada, ainda não está na época de colheita. Por isso, depois dum crash course (como dizem os Americanos!) sobre os seus produtos importantes, vi de primeira mão como esses bens são vendidos. O André, um agricultor que vive em Cana Brava, levou-me a vários destinos perto da aldeia onde ele normalmente troca as suas mercadorias; paramos em todo o tipo de lugar, duma cabana isolada no meio do mato a Tutóia, uma cidade ribeirinha que depende dos seus vizinhos para arroz, mandioca, e outros bens comerciais.[1] Foi interessante observar as interações entre o André e os membros destas comunidades; apesar de não pertencerem ao mesmo grupo, existe uma relação simultaneamente amável e respeitosa entre todos, talvez devido à vida semiperiférica que eles compartilham.

Nos dias seguintes, entretanto, mudamos de temática. Quando falamos a semana passada, o Ze’e notou o meu interesse na “experiência Guajajara”. Por isso, ele resolveu ajudar-me a aprender um pouco mais sobre a cultura, começando com a língua. Segundo ele, muitos Guajajara sabem falar português (ainda bem, se não eu estaria numa situação difícil!); este idioma serve como uma língua franca, principalmente nos negócios comerciais.[2] Mas, ao mesmo tempo, também têm uma língua utilizada exclusivamente entre eles. Esta foi o idioma que eu comecei a aprender.

Nós começamos com elementos básicos: bom-dia (çané cuêm), boa-noite (çané caroc), e outras frases uteis para qualquer visitante na comunidade.[3] Esta língua não tem nada a ver com o português nem com o inglês, então esta primeira parte foi bastante difícil. De vez em quando, para variar um pouco, ele mostrava-me alguns documentos traduzidos para o Guajajara, o mais interessante sendo uma copia da Bíblia Sagrada.[4] Isto levou a outra transição em foco; depois de uns dias praticando o idioma da comunidade, comecei a aprender um pouco sobre a sua fé também!

Antes do colonialismo, 100% dos Guajajara participavam no mesmo sistema cosmológico, o qual segue um formato típico entre os povos Tupi-Guarani. Como outras tribos deste grupo, os Guajajara acreditam em Maíra, um deus que criou a raça humana e os espíritos e seres sobrenaturais chamados de karowara.[5] Nesta época, ainda havia uma ênfase notável no ritual e no xamanismo; infelizmente, os portugueses trouxeram a sua religião consigo quando vieram para cá. Hoje em dia, 60% da população considera-se cristã, enquanto os outros 40% (que inclui o Ze’e e a sua tribo) ainda seguem a tradição original.[6] Por acaso, ele hoje convidou-me a participar na awashire-wehuhau, a Festa do Milho, quando chegar a época das chuvas; a melhor forma de aprender é através da ação, então esta será uma experiência bastante informativa.

Bem, estes últimos dias foram cansativos, mas a próxima semana será até mais cheia! Fui convidado para uma reunião dos caciques do Maranhão e o Ze’e prometeu introduzir-me a eles todos! Antes disso, entretanto, preciso descansar e refletir um pouco sobre estas primeiras semanas. Eu não sei até que ponto estas experiências vão ajudar-me a escrever a minha tese, mas eu sei uma coisa de certeza: eu estou ansioso para ver até onde o resto do meu tempo entre os Guajajara vai levar-me. Até já!

 

Bibliografia:

  1. “Guajajara.” Language Museum. Accessed October 18th, 2018. http://www.language-museum.com/encyclopedia/g/guajajara.php.
  2. “Guajajara.” Povos Indígenas do Brasil. Accessed October 18th, 2018. https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Guajajara.
  3. “Guajajara in Brazil.” Joshua Project. Accessed October 18th, 2018. https://joshuaproject.net/people_groups/11951/BR.
  4. Vocabulário Guajajara.” Vocabulário e dicionários de línguas indígenas brasileiras. Accessed October 18th, 2018. http://www.geocities.ws/indiosbr_nicolai/guajajara1.html.

 

Notas de rodapé:

[1] Eu também encontrei esta aldeia usando o Google Maps.

[2] “Guajajara,” Povos Indígenas do Brasil, accessed September 26, 2018, https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Guajajara.

[3] “Vocabulário Guajajara,” Linguas Indígenas Brasileiras, accessed October 18th, 2018, http://www.geocities.ws/indiosbr_nicolai/guajajara1.html.

[4] O texto que me inspirou a escrever esta parte está disponível aqui: http://www.language-museum.com/encyclopedia/g/guajajara.php.

[5] “Guajajara,” Povos Indígenas do Brasil, accessed September 26, 2018, https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Guajajara.

[6] Guajajara in Brazil,” Joshua Project, accessed October 18th, 2018, https://joshuaproject.net/people_groups/11951/BR.

Os Guajajara: [Diário de Viagem] Uma Exploração Narrativa, Pt. 3

25 de dezembro de 2017 – Povoado Cana-Brava, Município de Maranhão

Boa noite, pessoal. Eu admito que, neste momento, estou um pouco triste; já chegou a hora de começar a preparar-me para a minha partida da comunidade. Daqui há uns dias, estarei a caminho de São Paulo, uma viagem que me levará ao outro Brasil, ao Brasil que trocou as tribos e a terra pelas cidades e o cimento. Em vez de preparar as minhas malas, entretanto, decidi oferecer-lhes um pequeno resumo de tudo que tem acontecido desde o meu último post.

Se bem me lembro, eu escrevi antes de assistir àquela reunião dos caciques e outros indivíduos importantes na comunidade local. Como sempre, o Ze’e não me desapontou; este evento foi incrível! O meu tempo com o seu povo mostrou-me que os Guajajara, como todas as outras comunidades, tem a sua própria maneira de fazer as coisas; cada grupo indígena sobrevive no mundo contemporâneo usando as suas próprias tradições, estratégias, e atitudes, uma conclusão ostensivamente óbvia, mas que eu não tinha considerado antes de visitar a Cana-Brava. Entretanto, esta conferência desafiou os meus preconceitos ainda mais.

Depois de passar uma semana aqui, eu pensava que sabia tudo que havia para saber sobre a comunidade Guajajara; eu presumi que todas as tribos dessa família fossem mais ou menos iguais, por exemplo, e que as minhas experiências me tinham conferido uma espécie de autoridade sobre o tema. Mas essa reunião mostro -me que eu estava muito enganado. Eu conheci caciques de todas as regiões do Maranhão. Havia representantes das Terras Indígenas maiores, como a Araribóia (composto de 413.288 hectares), e membros das comunidades mais pequenas, como a de Morro Branco (medindo só 49 hectares).[1] E essa foi só a primeira diferença que eu observei; a minha noite foi repleta de conversas, nas quais eu aprendi sobre os costumes e valores, que distinguem as múltiplas comunidades Guajajara.

Um elemento que me interessou em particular foi a questão dos xamãs. Edison, um cacique da Terra de Rodeador, explicou-me que o xamanismo está desaparecendo de muitos povos indígenas, tanto no Maranhão como em outros estados; esse problema tem sido muito difícil para os Guajajara, que têm uma cultura vinculada à natureza e a entidades sobrenaturais.[2] Interessante, essa história xamânica está muito ligada ao sexo masculino, um sistema que talvez venha contribuído para a sua diminuição. Eu achei que o ato de abrir essa tradição às mulheres poderia ajudar a reestabelecer o xamanismo hoje em dia, mas, obviamente, não me competia mencionar isso a um grupo de caciques!

O resto do dia procedeu dessa forma, ao menos até o jantar. Durante a refeição, composta de arroz e cará (um tipo de peixe), eu pude falar com mais pessoas, aprendendo ainda mais sobre os seus povos.[3] Mas a maior surpresa chegou durante a sobremesa, quando Ze’e dirigiu-se à assembleia. Os seus primeiros pontos foram normais: introduziu-se, falou sobre os objetivos da conferência, etc. Mas, mesmo no fim do seu discurso, ele começou a falar sobre mim. Chamando-me de neriquê-ire, uma palavra que significa “irmão”, em Tupi-Guarani, Ze’e elogiou os meus esforços para interagir e assimilar  a sua família, levando a um momento muito emocional para mim.[4]

Há três meses atrás, eu não conhecia os Guajajara; eu nem sabia que eles existiam, muito menos que eles são uma comunidade amável e atenciosa. Nesse momento de reflexão, tendo só uns dias restantes com o Ze’e e a sua família, eu simplesmente espero que eu um dia eu possa retribuir `a sua generosidade e ajudá-los a manterem essa vida preciosa que, infelizmente, não será a mesma quando eu voltar.

[1] “Guajajara,” Povos Indígenas do Brasil, accessed November 29, 2018, https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Guajajara.

[2] Ibid.

[3] Ibid.

[4] “Vocabulário Guajajara,” Linguas Indígenas Brasileiras, accessed November 29th, 2018, http://www.geocities.ws/indiosbr_nicolai/guajajara2.html.

Nessa entrevista,  Sônia Guajajara apresenta alguns elementos sobre a experiência indígena no Brasil atual. Os temas incluem a sua experiência política, a representação e a presença dos Guajajara no mundo brasileiro, e o papel das mulheres nos esforços sociais.

Uma Reflexão sobre Métodos Escritos em um Contexto Indígena

Blogs, Diários, e o Povo Guajajara:

Paulo Frazão

Quando eu estava a escolher minhas aulas para este semestre, eu queria passar esses três meses estudando algo diferente, ficando cara a cara com uma perspetiva ou ponto de vista que eu nunca tivesse considerado antes. Deste modo, a aula da Professora Librandi, intitulada “Topics in Brazilian Cultural and Social History – Indigenous Brazil,” pareceu-me a opção perfeita. Apesar de estar buscando um certificado em estudos portugueses e, por isso, já ter completado várias aulas neste campo, eu nunca tinha tido a oportunidade de engajar-me com a voz indígena; a maioria das minhas experiências no departamento focou-se em contextos europeus ou africanos, deixando esses povos nativos sem representação (presumidamente sem querer). Porém, essa classe prometeu preencher essa lacuna usando leituras, filmes, convidados, e outros meios para ajudar-nos a compreender a condição indígena.

A estratégia para desenvolver esta empatia que mais me interessou, entretanto, foi a escrita. Ao contrário dos outros exercícios (como as leituras e os filmes), que eram fascinantes, mas intrinsicamente passivos, a escritura oferecia um método mais ativo e pessoal para um indivíduo envolver-se com os estudos indígenas. Ao longo do semestre, eu completei uma série de blogs sobre o povo Guajajara, um grupo indígena que vive primariamente no estado do Maranhão, no nordeste do Brasil. Nestes posts, eu compartilhei informação, notícias, e reflexões sobre essa comunidade regularmente, um processo que me ajudou a melhor entender as nuances de sua situação. Ao mesmo tempo, eu também construí uma coleção de três diários ficcionais, nos quais eu assumo a personagem de Maurício, um estudante da Universidade de São Paulo, que acaba por viver com uma comunidade Guajajara durante uns meses. Apesar de pertencer à esfera da escrita e de possuir vários outros elementos parecidos com os blogs acima referidos, este exercício narrativo possibilitou que eu abordasse o tema indígena de uma maneira significativamente diferente.

O conjunto de paralelos e disparidades entre estes dois tipos de obra escrita será o foco primário deste trabalho final. Ao longo deste ensaio, eu explorarei as relações entre esses modos de escrita, considerando tanto as diferenças como as semelhanças para melhor entender as oportunidades únicas que cada meio oferece no processo de escrever sobre a condição indígena no mundo contemporâneo.

Antes de entrar nessa análise, entretanto, seria melhor oferecer um pouco de contexto para ambos os trabalhos. Em termos logísticos, os blogs e os ensaios narrativos são muito diferentes. Por um lado, os posts são curtos e regulares; eu postei uma entrada nova quase todas as semanas, criando uma relação complexa com os meus leitores. Enquanto a frequência dos textos parece convidar os leitores a aprenderem um pouco sobre as minhas opiniões e as minhas predisposições (criando “common ground” com a audiência, como explica Michelle Gumbrecht), a sua brevidade cria uma linha na areia, asseverando alguma distância entre as duas partes (Gumbrecht 3). De outro lado, as narrativas foram muito mais longas e muito menos frequentes, em média. Esta combinação estabelece uma dinâmica mais pessoal do que os blogs. O seu tamanho oferece ao escritor muito espaço para contribuir com elementos e detalhes pessoais, e as semanas separando os textos confere ao leitor bastante tempo para refletir sobre o seu conteúdo e internalizar os resultados desse processo. É interessante notar, também, que ao fim do dia a audiência dos dois projetos é a mesma; eu postei os blogs e as narrativas no website que nós construímos no fim do semestre. Obviamente, entretanto, os efeitos que estes trabalhos têm são muito diferentes, ao menos em referência ao seu comprimento e frequência.

Mas também existem outros vínculos entre a narrativa e o “blogging” mais profundos, que revelam oportunidades para indivíduos (como os estudantes na minha aula) que querem engajar-se com populações indígena. A primeira destas relações é o controle profundo que ambos os meios oferecem às pessoas que participam neles, primariamente ao escritor. Escrever é um ato generativo; independentemente do conteúdo que o escritor cria, ele produz algo que (com sorte) não existia antes, deixando uma marca física da sua presença e da sua perspetiva. No seu artigo, “Blogging by the rest of us,” Diane J. Schiano discute a funcionalidade de blogging como “a form of online personal journaling”. Schiano nota que, apesar de ser uma entidade pública, a maior parte dos blogs tem “very few occasional readers;” ao invés, muitas vezes o escritor publica as suas entradas simplesmente como declaração que “blogito ergo sum:” “I blog therefore I am” (Schiano 1145). Neste espaço simultaneamente público e privado, o autor confirma que ele está afetando o mundo, embora seja de uma forma usualmente menor.

Ao mesmo tempo, estes blogs também conferem um certo controle sobre a imagem pública do autor, ao menos segundo Michelle Gumbrecht. No seu artigo, intitulado “Blogs as ‘Protected Space’,ela observa que blogueiros podem aproveitar a natureza de seu blog para transmitirem opiniões e uma personalidade que não é a sua. Na maior parte dos casos, a audiência que segue um blog pode ser dividida em dois grupos: aqueles indivíduos que têm uma relação profunda com o escritor, e por isso querem apoiá-lo, e aquelas pessoas que simplesmente têm algum interesse no material que o autor discute. Esta dualidade facilita a construção de um “protected space,” onde o autor sente-se confortável publicando qualquer coisa, seja verdade ou mentira; os seus amigos o apoiam e o resto não tem, em teoria, a motivação para tentar corrigi-lo (Gumbrecht 3). Na verdade, este resultado parece-me um pouco improvável, principalmente quando se considera a importância do politicamente correto ou a pressão para desenvolver uma mídia honesta no mundo contemporâneo. Porém, é uma possibilidade que existe e, portanto, uma indicação adicional do nível de controle que este meio online poderia permitir ao autor.

Interessantemente, o mesmo potencial existe na narrativa, devido primariamente à incerteza que existe neste meio. Os autores, especialmente aqueles que têm como objetivo criar uma obra de ficção, têm uma certa liberdade artística; eu, por exemplo, inventei todas as personagens no meu trabalho enquanto tentei manter a autenticidade histórica dos detalhes antropológicos. Entretanto, esta leniência pode ser abusada para mascarar ignorância ou desonestidade, até mais do que no caso dos blogs.

Afortunadamente, este controle sobre as impressões do leitor pode ser utilizado de uma forma positiva. Ultimamente, a questão indígena tem sofrido muito no Brasil. Além da incursão de madeireiros e garimpeiros na sua terra e a violência impune que eles têm utilizado para perpetrar essa invasão, o próprio presidente está contra os direitos indígenas também. Apesar de ter ganho a presidência, Jair Bolsonaro tem a reputação de atacar aqueles indivíduos que não apoiam a sua missão e interesses; em uma entrevista realizada em 1998, por exemplo, ele declarou que foi uma “pena que a cavalaria brasileira não tenha sido tão eficiente quanto a americana, que exterminou os índios” (Survival International). Este homem, como muitos outros, tem abusado de sua posição influente para tentar destruir a opinião pública sobre as comunidades indígenas. Meios como estas narrativas e blogs pessoais, então, oferecem uma oportunidade para combater estes esforços. Obviamente, existe o perigo supracitado de o autor misturar o real com a fantasia, falando por estes povos que ele quer defender. Eu tive que negociar este risco nas minhas próprias narrativas. No final do primeiro capítulo da história, a minha personagem nota que os Guajajara “trataram a [ele] como se fosse da família.” Na realidade, entretanto, pode não existir esta cordialidade; talvez a série de incursões, ameaças, e mortes tenha transformado a sua afabilidade em trepidação. Mas, ao fim do dia, esta incerteza é um dos perigos que qualquer autor escrevendo sobre estas comunidades tem que negociar. Ambos os meios têm o potencial de moldar a opinião pública de uma forma positiva (com suficiente esforço e bastante sorte), mas sempre temos que asseverar que a mensagem que compartilhamos não tenta abafar o som da voz indígena. (muito bem!)

Outra similaridade entre as narrativas e os blogs é o potencial para a aprendizagem que os acompanha. Obviamente, um dos objetivos primários de ambos os trabalhos é a exposição de ideias, fatos, e atitudes novas às suas audiências. Na minha obra narrativa, por exemplo, eu tentei incluir fatos interessantes sobre os Guajajara, como as comidas que eles cultivam (mandioca, amendoim, arroz, etc.) e as áreas onde eles moram hoje em dia; ao mesmo tempo, os blogs iniciais contêm até mais fatos, como os primeiros que focaram menos nas minhas opiniões em favor da informação que já existia sobre este povo (Povos Indígenas do Brasil). Estes trabalhos abrangem muita informação cultural também. Além do contexto que os fatos supracitados ofereceram à minha narrativa, por exemplo, eu decidi incluir elementos menos tangíveis, como a própria linguagem dos Guajajara. São elementos desta natureza, mais dinâmicos e, como resultado, mais fascinantes, que me levaram ~a outra realização: os leitores não são os únicos que aprendem e crescem com estes trabalhos.

Normalmente, as tarefas designadas em um curso têm como objetivo o desenvolvimento do estudante em termos das suas habilidades ou conhecimento de um certo assunto. Neste caso, entretanto, com as narrativas e os blogs, eu acabei por internalizar coisas um pouco diferentes. No meu conto, em primeiro lugar, eu aprendi bastante sobre a língua Guajajara, como notei acima. Um membro da família linguística Tupi-Guarani, eles chamam o seu idioma de ze’egete, ou “fala boa,” informação que foi incluída na primeira entrada no meu blog. Obviamente, então, este blog ofereceu-me a oportunidade de explicar certos elementos contextuais desta língua aos leitores. Mas, graças à criatividade que elas possibilitam, as narrativas acabaram por funcionar como uma espécie de tela, onde eu pude pôr o vocabulário Guajajara em prática. No terceiro capítulo, um cacique Guajajara chama o protagonista de “irmão;” mas, para enfatizar até mais o vínculo entre eles, eu queria usar o termo que se usaria numa comunidade Guajajara hoje em dia. Assim, eu comecei um processo de pesquisa, procurando em dicionários Guajajara (que, infelizmente, tinham só as palavras mais básicas) até encontrar o termo correto: neriquê-ire (Línguas Indígenas Brasileiras). Este objetivo simples de usar só uma palavra Guajajara de uma forma criativa resultou em uma investigação que durou quase uma hora, na qual eu tive a oportunidade de estudar os padrões desta língua com mais detalhe e, no fim, adaptá-la para comunicar a minha própria mensagem. Apesar de abordarem o mesmo assunto idiomático, então, a narrativa ofereceu-me uma experiência muito mais pessoal e marcada que os blogs a este respeito. (muito bem!)

A razão para esta disparidade em profundidade, entretanto, é outra questão interessante. A hipótese que me pareceu mais justificável atribui o poder emocional de minha experiência no próprio processo narrativo. No seu livro, “Applied Imagination – Principles and Procedures of Creative Writing,” Alex Osborn declara que “Civilization, itself, is the product of creative thinking;” citando John Masefield, ele nos lembra que “imagination has made life on this planet an intense practice of all the lovelier energies” (Osborn 1). Segundo Osborn, Masefield, e  vários outros indivíduos que o primeiro menciona subsequentemente na sua obra, a imaginação tem poder brilhante; através dela, qualquer pessoa pode construir mundos inteiros que até podem influir no mundo real, como nota Osborn. Levando isto em conta, a disparidade entre a narrativa e os blogs não deveria ser uma surpresa. Salvo a inspiração que eu ganhei do material que eu li sobre os Guajajara, e todos os fatos que acompanharam esta pesquisa, eu criei o mundo em que o Maurício vive. Este sentimento de posse do projeto (não das culturas representadas nele) talvez tenha sido o catalisador principal do conforto que eu senti neste processo criativo. Embora Gumbrecht insiste que os blogs são uma espécie de “protected space,” eu senti este efeito até mais com este projeto narrativo; neste caso, entretanto, não foi a minha audiência que me deixou ficar confortável neste espaço, senão a forma generativa através da qual eu interagi com o povo Guajajara.

Outra disparidade entre estas duas formas escritas envolve a noção de tempo que as duas estabelecem através das suas palavras. A temporalidade dos blogs, por um lado, parece fundamentalmente retrospectiva; todas as entradas que eu escrevi, ao menos, possuem o mesmo olhar enfocado no passado. O blog sobre a Sonia Guajajara e os seus esforços é um exemplo interessante deste fenômeno. Nessa entrada do blog, eu discuto a divisão entre homem e mulher na cultura Guajajara, enfatizando a desigualdade que existe em favor do primeiro grupo. Eu concluo este post com uma hipótese, considerando a possibilidade de que outras mulheres deste povo sigam o mesmo caminho que a Sonia Guajajara, que tem tido uma carreira política fascinante e aparentemente sem precedente. Mas, inevitavelmente, tudo que eu mencionei nesta entrada estava contextualizado no passado. Se a Sonia não se tivesse candidatado para a vice-presidência, por exemplo, ou se não houvesse uma história de disparidades sociais baseadas em sexo nesta comunidade, esta entrada não existiria; ela teria sido escrita sobre algum outro tema, sobre o qual haveria suficiente material para continuar a conversa. Parece, então, que a estrutura do blog está intrinsecamente ligada ao passado, uma conexão que facilita a conversa sobre o presente e a conjectura sobre o futuro.

Ao contrário, a temporalidade narrativa é substancialmente diferente; enquanto os blogs tendem a se basearem no passado, as narrativas semi-ficcionais parecem estar completamente separadas do tempo. Na minha série de contos, eu empreguei a estrutura de um diário pessoal para asseverar o que a minha personagem, Maurício, estava vivendo no momento. Apesar de constituírem uma reflexão sobre experiências já passadas, ele continua vivendo no contexto em que elas aconteceram; Mauricio conta os eventos do primeiro capítulo, por exemplo, logo no começo do dia seguinte, minimizando o espaço construído entre passado e presente. Ao mesmo tempo, este formato de diário contribui até mais para este efeito de tirá-lo do tempo, enquadrando as suas experiências como uma corrente de extensão indefinida, terminando só quando as suas reflexões terminarem também. No seu livro, “Travellers’ Tales: Narratives of Home and Displacement,” George Robertson considera a temporalidade narrativa em uma perspectiva parecida, mas sutilmente diferente:

Narrative—as a structure of development, growth and change—the acquisition of knowledge and solution of problems—is conceived as physical process of movement, of disruption, negotiation and return. The movement beyond liminality is marked by a literal movement outside the integrated regimes of a time and space. The ‘trip’ constitutes a lapse in the regular rhythms of mundane existence, it leads to a place where time ‘stands still’ or is reversed into a Utopian space of freedom, abundance, and transparency (Robertson 197).

Segundo Robertson, então, as aventuras de Maurício e o modo com que elas levam ao seu crescimento e maturação constituem um afastamento físico dos limites temporais cotidianos. Na realidade, o leitor sabe quando a personagem entrou nesta comunidade (29 de novembro de 2018, segundo o primeiro capítulo), mas quem sabe se ele acabou por ir-se embora? Na narrativa, não existem os “regular rhythms of mundane existence;” o mundo ficcional possibilita qualquer evento, especialmente quando um autor deixa qualquer tipo de ambiguidade na “conclusão” da sua obra (da mesma forma que a audiência nunca vê Maurício voltando para casa, por exemplo). Contudo, esta discussão serve para mostrar que a questão temporal na escrita narrativa ocupa um espaço até mais intersticial e muito menos concreto de que nos blogs.

De certa forma, o tipo de tempo inerente à narrativa compara-se com o conceito de tempo em algumas tradições indígenas. Richard J. Perry nota no seu libro, “From Time Immemorial: Indigenous Peoples and State Systems,” que muitos estados internacionais reconhecem que a maioria dos povos indígenas “have been there … from time immemorial” (Perry 8). Enquanto os Guajajara, por exemplo, vivem no presente, muitas das suas tradições ainda mantêm elementos em comum com os rituais dos seus antepassados distantes; o momento em que povos como este foram “descobertos” (por falta de uma palavra melhor) pelos europeus, então, representa uma espécie de conflito cronológico. É uma cena popular e frequentemente representada em filmes ou livros: um grupo de exploradores ou antropólogos encontra com uma tribo indígena, desconectado do ritmo e da temporalidade ocidental aos quais o primeiro grupo adere. De qualquer forma, estes encontros iniciais e as subsequentes misturas culturais servem para tirar estes povos do “Utopian space” que eles preservaram até este ponto, forçando-os a se adaptarem aos “rhythms of mundane existence” que Robertson deprecia.

Interessantemente, as próprias narrativas indígenas, outra relíquia do seu passado perdido, parecem construir o mesmo tipo de temporalidade que eu observei nos meus contos. Grupos como os Guajajara, os Krenak, e os Yanomami têm culturas orais riquíssimas, e a maior parte do seu conteúdo é um conjunto de contos e mitos sobre a sua história e aquelas figuras que a possibilitaram. Por um lado, o sujeito destas histórias em si está em linha com a liminaridade discutida por Robertson acima. Em A queda do céu, por exemplo, Davi Kopenawa passa um capítulo inteiro falando sobre os xapiri, “espíritos” com os quais os xamãs interagem na vida diária (Kopenawa 63). Segundo Kopenawa, estes seres são uma presença constante; estão sempre influenciando o mundo físico hoje em dia, da mesma forma que atuaram na concepção da tribo Yanomami. Ao mesmo tempo, entretanto, o ato de contar estas histórias a outra pessoa contribui de uma forma mais profunda para esta intersticialidade temporal. Através do recontar estes contos narrativos, o xamã converte o passado em uma nova instância do presente; com cada audiência nova, ele entra neste espaço liminar de novo, recriando esta cena utópica hoje em dia. De certa forma, nós, se escrevemos narrativas sobre a sua história, tentamos fazer a mesma coisa. Sem querer, a minha narrativa acabou por sublinhar aqueles elementos da cultura Guajajara que eu achei mais fascinantes e que eu gostaria que o resto do mundo apreciasse também. Como antes, entretanto, sempre temos que considerar a linha que nos separa dessa comunidade; o mecanismo central de comunicar a informação é parecido com o indígena, mas, ao fim do dia, a perspectiva da qual devemos construir as narrativas deve ser a nossa.

Assim, estas duas formas de escrever oferecem maneiras diversas de abordar as tribulações indígenas, algumas mais profundas que outras. Mas, de qualquer forma, ainda existem alguns riscos com estes métodos, o mais perigoso sendo o potencial do escritor abafar a voz indígena, dele sobrescrever as suas experiências com as suas próprias inclinações. Ao longo desta aula, entretanto, nós observamos várias maneiras através das quais este risco poder ser combatido. O primeiro passo sempre deve ser o mero reconhecimento deste perigo. Na minha narrativa inicial, eu escolhi o conteúdo com muito cuidado; como mencionei acima, eu queria que o leitor soubesse onde estava a linha separando realidade e ficção, entre fato e aquilo que eu construí. Mesmo assim, houve momentos em que eu assumi a voz de personagens indígenas de uma forma um pouco desconfortável, evidência da presença deste perigo. Outra forma mais direta de combatê-lo é o ato de modificar a sua própria perspectiva para concordar com o ponto de vista daqueles indivíduos que o autor quer representar. Esta foi a estratégia que muitos dos nossos convidados adotaram. Vinicius Furuie, por exemplo, conheceu alguns membros da população ribeirinha para melhor escrever sobre as suas condições, enquanto Sérgio Bairon levou esta ideia ao extremo e pôs a câmara nas mãos do indígena, encorajando-lhes a contarem a sua própria história. De qualquer maneira, estas pessoas encontraram formas de superar este perigo na sua pesquisa sobre populações indígenas (ou outros povos tangenciais), então, a mesma possibilidade existe para nós também. Esta aula ajudou-me a reconhecer que, apesar de sermos apenas estudantes situados em uma universidade a quase 4.000 milhas de distância destes povos, nós temos a agência para ajudá-los. Obviamente, é improvável que os nossos escritos alterem a opinião de Bolsonaro, por exemplo, mas o fato de nós estarmos a estudar este tema e estas injustiças talvez sirva para outros grupos fazerem o mesmo. Com alguma sorte, o material incluído neste curso algum dia pode se transformar em teses universitárias, em projetos de serviço, ou talvez até na fundação de uma organização para contribuir com a questão indígena de uma forma mais direta. Ao fim do dia, os esforços que nós fazemos agora, embora sejam pequenos (um blog cada semana, uma narrativa fervorosa três vezes ao semestre), têm o potencial para resultar em efeitos monumentais. Com muito esforço e bastante discrição, nós podemos contribuir à nossa própria maneira, e eu comecei com um blog e um diário.

 

Obras Citadas

 

“Guajajara.” Povos Indígenas do Brasil. Accessed January 10, 2019.

 

Gumbrecht, Michelle. “Blogs as Protected Space.SemanticScholar, 2004,

 

Kopenawa, Davi, et al. A Queda Do céu: Palavras De Um xamã Yanomami. Companhia Das Deltras, 2016.

 

Osborn, Alex F. Applied Imagination: Principles and Procedures of Creative Problem-Solving. Creative Education Foundation, 2001.

 

Perry, Richard John. From Time Immemorial: Indigenous Peoples and State Systems. University of Texas Press, 2010.

 

Robertson, George. Travellers Tales: Narratives of Home and Displacement. Routledge, 1994.

 

Schiano, Diane J., et al. “Blogging by the Rest of Us.” Extended Abstracts of the 2004 Conference on Human Factors and Computing Systems – CHI -4, 2004, doi:10.1145/985921.986009.

 

What Brazil’s President, Jair Bolsonaro, Has Said about Brazil’s Indigenous Peoples.Survival International

 

Vocabulário Guajajara,” Línguas Indígenas Brasileiras, accessed January 10th, 2019.

 

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